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Descumprimento contratual como reflexo da crise do coronavírus

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Em virtude da grave situação da pandemia do Coronavírus/COVID-19, surgem diversos questionamentos jurídicos por toda sociedade.

Passamos a abordar alguns temas relacionados ao direito civil, especificamente o cumprimento de contratos e adimplemento das obrigações em geral.

As questões trabalhistas foram tratadas em outro artigo pelo Advogado João Guilherme A. Martins, em razão da especificidade da matéria e encontram-se disponíveis em nosso site.

Pois bem, o inadimplemento contratual como consequência direta das medidas de isolamento impostas pelo Estado. Diferente das obrigações tributárias, as obrigações contratuais não foram objeto de normas específicas. Acreditamos que nem poderia ser diferente, pois as situações são tão variadas e peculiares, que não é possível o estabelecimento de uma moratória contratual geral, pois, assim como os devedores, os credores também não podem ficar completamente desamparados.

Assim, com base na teoria geral do direito, na teoria dos contratos e em algumas Decisões Judiciais, no que diz respeito aos contratos, podemos adiantar algumas respostas, com grau um pouco maior de generalidade.

Para tanto, apoiamo-nos em princípios e normas do direito civil e na sua interpretação dada em casos muito concretos, exemplificativos.

A análise do inadimplemento passa por vários aspectos obrigacionais. No entanto, podemos afirmar que o mais importante balizador será o princípio da boa-fé objetiva, contido no artigo 422, do Código Civil. Este princípio consiste numa cláusula geral, aplicável a todo e qualquer contrato. Auxilia na interpretação contratual, especialmente em casos mais extraordinários, como o da pandemia.

A cláusula geral da boa-fé impõe que as partes sejam leais, honestas e cooperem para o bom adimplemento contratual. A boa-fé também tutela o adimplemento substancial e impede o abuso de direito proveniente do devedor ou do credor.

Invocada a tutela da boa-fé em favor do devedor, ela pode servir àquele protestado ou executado judicialmente, por dívidas que foram inadimplidas unicamente em razão da pandemia, quando não lhe foi dada oportunidade de efetuar um plano de pagamento.

Aqui, podemos ilustrar com um exemplo prático proveniente do Tribunal de Justiça de São Paulo em que “a magistrada determinou que instituição bancária suspenda, pelo prazo de 120 dias, cobrança de empréstimo consignado contratado por funcionário de empresa aérea, em razão da redução de salário imposta pela companhia por conta da pandemia do coronavírus. Caso haja descumprimento, o banco deverá pagar multa de R$ 10 mil para cada cobrança indevida. Para a juíza, a proliferação do vírus é um caso fortuito que impede o autor da ação, ao menos temporariamente, de cumprir a obrigação nos termos contratados. Portanto, no quadro atual, todos terão que fazer concessões, dado o estado de calamidade pública que passamos, de forma que no presente caso parece razoável a suspensão pelo prazo inicial de 120 dias, até para que o autor tenha tranquilidade durante o período de isolamento social e possa voltar às suas atividades habituais de risco de forma tranquila, sem exposição da vida de terceiros.”

Há outros precedentes de suspensão da execução de liminar de despejo, fundada justamente nas recomendações de recolhimento domiciliar imposto para toda a sociedade.

Também como exemplo prático, afastou-se a mora (não considerou inadimplido) um contrato de financiamento imobiliário, durante o período em que a parte direcionou todo seu dinheiro, para o tratamento de filho acometido por grave câncer (Apelação 991.06.054960-3).

Neste caso, como a mora foi afastada e foi postergado o pagamento das parcelas vincendas, foram também excluídos do cálculo os juros e as multas decorrentes do atraso.

Por fim, colhemos outra decisão, agora do Superior Tribunal de Justiça (STJ), no seguinte sentido: “Não há mora do devedor quando inexistente culpa sua, elemento exigido pelo art. 963 do CC para sua caracterização. Inexistindo mora, descabe condenar em juros moratórios e em multa” (STJ. REsp 82560-SP, Rei. Min. RUY ROSADO DE AGUIAR, j. 11/03/1996).

Destes precedentes, pode-se extrair que a alegação das partes e as decisões encontraram respaldo em circunstâncias bem específicas, em que o inadimplemento tinha justificativa.

Ressaltamos, portanto, que o afastamento da mora não pode ser um pressuposto geral e oportunista para toda e qualquer situação. A situação de inadimplemento deve ter relação direta e exclusiva com os efeitos da pandemia.

Entendemos que em todo e qualquer caso, as partes não só devem agir, mas principalmente registrar e comprovar que agiram para uma solução da situação.

Uma importante ferramente para o registro e comprovação é a realização de Notificação Extrajudicial ao credor, com exposição clara e precisa:- do vínculo direto entre a pandemia e os inadimplementos; – da apresentação de proposta de pagamento e forma de pagamento; ou indicação de um planos concreto para reabilitação da normalidade.

Tudo isso visando que o impacto financeiro não seja prejudicial para apenas uma das partes, pois a comutatividade e o equilíbrio também são princípios que norteiam os contratos.

O direito também socorre aos credores, pois a hipótese de suspensão será viável somente caso o inadimplemento tenha ocorrido exclusivamente em razão da pandemia. Não nos parece que a pandemia Covid-19 possa ser utilizada, com oportunismo, por devedores contumazes.

Da mesma forma, antes de tomarem medidas mais drásticas, é aconselhável aos credores buscarem junto aos devedores, por meio de Notificações Extrajudiciais, reuniões por videoconferência, tratativas concretas por e-mail, soluções práticas e colaborativas, até mesmo com propostas (plano) viável de adimplemento.

Tudo porque o processo judicial enseja custos elevados e poderá não surtir efeitos imediatos, pois, muito provavelmente, nos casos contemporâneos à pandemia, os juízes não dispensarão as audiências de conciliação preliminar, que poderão levar meses para acontecer. Também, porque, caso não demonstradas as tratativas de cooperação para solução, o credor poderá se deparar com a suspensão da mora, obviamente em casos em que o inadimplemento, comprovadamente, se deu exclusivamente em razão da pandemia. Tais casos poderão acarretar no pagamento de verba sucumbencial contra o credor, em favor da parte inadimplente e seus advogados.

Portanto, mais do que nunca, antes de qualquer medida, devedor e credor deverão buscar orientação de advogados, que avaliará a melhor forma de agir em cada caso, consideradas todas as suas circunstâncias.

 

Curitiba, 27 de março de 2020.

 

         Pedro Rafael Thomé Pacheco

         Advogado – OAB/PR 45.618

         Sócio da Martins & Thomé Pacheco Advocacia

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